26.11.06

Num mundo de palavras, sem palavras

Num mundo de palavras, sem palavras,
o repetir do ruído que grita lá fora,
a violência com que me assedia
é
por fim, o silêncio.

Num mundo de palavras, sem palavras,
o rumor dos dias, no percurso assombrado,
na vaga da melancolia
é
por fim, o silêncio.

Num mundo de palavras, sem palavras,
o assobio do ar (que és tu a passar),
que atravessa o mar do coração
é
por fim, o silêncio.

E quando o mundo me fala
Quando as vozes, os gritos e os murmúrios
parecem arrancar-me da vida,
viro-me para dentro, olho para ti e
és
por fim, o silêncio.

Inventário que é uma arte poética

Não esquecer o ramo onde te sentes com um livro
e em volta a chuva e suas pequenas germinações
(ouvir Soyinka sobre a beleza e o consolo)

Ou como a sombra se prolonga ainda
desde essa primeira sombra, original
nascida há cinquenta anos (ou mais?)
(o rosto de Kopland como se batido
pelo voo dos gansos)

E os amigos infundem suas palavras devagar
amados até ao centro de certas árvores
os dedos atentos à mineral solidão

Então a voz permea as magnólias
as crianças sentadas, os restos
regressam vestígios de carne
o odor das espigas, humidade

(e quando nenhuma palavra for possível
escrever o silêncio e nada mais)

25.11.06

Pórtico

"(o bebedor nocturno)

Já me aconteceu imaginar a vida acrobática e centrífuga de um poliglota. Suponho o seu dia a dia animado por um ininterrupto movimento de deslocações, transmutações, permutas e exaltantes caçadas de equivalências, sob o signo da afinidade. Vive das significações suspensas, da fascinação dos sons que convergem e divergem - e há nele decerto um desespero surdo, pois que na desunião dos idiomas busca a unidade improvável. Multiplicando as operações de propiciação da unidade, ele caminha irradiantemente para a dispersão. Descentraliza-se. Existe em estado de Babel. O seu pensamento, partindo do hebraico, dá um salto quase místico no latim e cai de cabeça para baixo no grego antigo. É um aventureiro completamente perdido, o meu poliglota cheio de malícias linguísticas. Faz disparates destes: verte de nauatle para esquimó, emocionando-se em banto e pensando em chinês, um texto que o interessou por qualquer ressonância árabe. Também pega na palavra «cravo» e tradu-la para quinze línguas. O cravo é cada vez menos cravo. É uma colorida e abstracta proliferação sonora. Então ele junta ao cravo aramaico o adjectivo turco «branco». Encontra-se neste momento em plena vertigem paranóica-idiomática. É um perfeito irrealista - e eu amo-o, à distância."

Photomaton & Vox (Herberto Helder)