29.12.06

Natal

"Quando se deseja e a sério, sem meias medidas ou meias palavras. Este natal viva tudo por inteiro, viva a magia de cada momento."

Vodafone

Via maradona.

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny

28.12.06

Sobre nada

Procurem-me, encontrem-me JÁ! Façam por mim o que não consigo fazer pelas minhas próprias mãos, permitam-me o cansaço da minha procura, que me faz desistir. Preciso de novos sítios para procurar, novas coisas para encontrar, mas devolvam-me tudo. Devolvam-me um brinquedo, devolvam-me o mar, devolvam-me a pequena mola com forma animal que a minha mãe usava para me prender os longos cabelos, façam de novo a vida (se é que alguma vez ela existiu) jorrar-me por todos os poros, façam as minhas mãos escrever, escrever com ou sem sentido, qualquer coisa que me atravesse, me inquiete. Pelos campos alheios arrasto uma sombra que me prolonga, indefinidamente me prolonga e me cansa, tão desesperadamente me cansa. Não quero mais cansaço, mais dores no meu corpo que se arrasta, mais metáforas para uma vida inútil. Quero apenas encontrar um Eu que vagueie, exista (talvez ainda mais inutilmente exista), sem qualquer consciência de ser, sem nada. Nada. Em todos os lugares comuns que possa ter (d)escrito há um pulsar incessante que não me deixa parar de bater nestas teclas sozinhas, cada uma de sua letra, sua autonomia.
Porque não me deixo dormir na esperança de um sonho que por fim me acorde, talvez de êxtase, talvez por descobrir qualquer coisa fascinante, linda? Já não quero saber, fartei-me de perguntas, apenas me acentuam a inutilidade e a incapacidade de qualquer coisa.
Desisti do sentido. Pouco me importa se tudo isto possui algum, esqueçam a lógica. Deixem-me em paz na minha fraca, infrutífera procura, também já não quero que procurem por mim.

27.12.06

à porta de um quarto

"Escreve-se um poema devido à suspeita de que, enquanto escrevemos, algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo. Como na infância quando se fica à porta de um quarto obscuro e vazio. Poder-se-ia esperar um dia inteiro, dias seguidos. Acontece o mesmo, quero dizer: não acontece nada.
A suspeita apenas de que nos aguarda uma espécie de graça reticente, um dom reticente."

Herberto Helder

22.12.06

Em tudo

Vejo as torres, os mundos encerrados,
o reflexo do sol no espelho, tu.
Na vaga de todas as inquietações,
o ondular.
O ondular de tudo, seja a maré ou o teu cabelo.

Em todas as imagens que te cortam, me cortam,
em todos aqueles dias de possibilidades,
estamos sós.
Não contes as marcas das minhas mãos,
um dia revelarão a velhice interior.

Mas na solidão e envelhecimento interior
(talvez na inevitabilidade de tudo)
encontras-me, em todos os momentos existes
(na sobreposição de todas as indecisões)
em mim.

20.12.06

O homem que não pôde ser imperador

"Leitor, quem quer que sejas, desejaria neste momento estar contigo face a face, olhos nos olhos e a mão na mão e dizer-te em voz baixa: Crês que vives? Que vives verdadeiramente, profundamente, inteiramente? Parece-te a tua vida tão bela e grande como talvez a sonhaste nas noites ardentes da juventude?
E em voz mais baixa, muito baixinho, desejaria perguntar-te: Tiveste juventude? Sentiste em ti, dentro das tuas vísceras, algo que fermentava, que fervia, que se agitava, que estremecia, que queria sair, transbordar, inundar o mundo como um lago ardente? Sentiste alguma vez, depois de umas horas de excitação, depois de um formoso crepúsculo, depois dos versos de um poeta, sentiste que eras tu, tu em pessoa, o primeiro homem, o descobridor da vida, o descobridor do Mundo? E não te pareceu mísera esta vida e não te pareceu pequeno este Mundo? Não desejastes a morte por amor à vida? Não experimentastes as ânsias de Alexandre ante o Céu longínquo?
Isto queria eu perguntar-te, vilíssimo leitor, pobre esgrouvinhado, que estás aqui a ler páginas, a escutar as palpitações da vida de outro, porque não sabes viver por tua conta. Não te parece vil, covarde, covardíssima, a acção que estás a praticar? Uma cadeira suporta-te, diante de ti acham-se as páginas ligadas, nessas páginas há sinais negros, e tu percorres com os olhos estes sinais e a tua almazinha sorri ou choraminga, vê ou entrevê, conforme os sinais forem despertando à força as tuas imagens sonolentas. E crês viver, parece, lendo livros! Se saísses de casa, olharias com grande desprezo para o vulgo, que não está ao corrente, que não faz psicologia e não se nutre de literatura."

in "O homem que não pôde ser imperador",
Palavras e Sangue, Giovanni Papini

18.12.06

neverending story ou coisa que o valha

Declaro findo o período em que, segundo atestadas fontes, estivemos em parte nenhuma. Para os que possam supor que estas travessias se revestem de oportunidades genesíacas, gostaria de deixar bem claro que é falso. Estamos agora numa parte nenhuma diferente e por lá contamos permanecer até próximo comunicado.

11.12.06

rEVOLUÇÕES

A revolução de Gil Scott-Heron tem, evidentemente, as suas referências, uma geografia própria, um enraizamento não replicável. Então porquê o post (que ainda por cima não existe)? Porque julgo haver uma matriz comum a qualquer revolução (há, sem dúvida): uma teia de silêncios e um prodigioso esforço representativo. A revolução - pessoalíssima, impercetível - deve ser encenada, tornada semi-pública, deve ter arroubos de manifesto e ser ritualizada com minúcia. É o Eu como construção, o Eu actificado, alterizado, o Eu nulo. A revolução será sempre mortificadamente ao vivo, construidamente irreversível, ficticiamente a sério! E isto é tão glorioso como outra coisa qualquer.

THE REVOLUTION WILL NOT BE TELEVISED

(este post não existe: the revolution will not be posted!)


"You will not be able to stay home, brother.

You will not be able to plug in, turn on and cop out.

You will not be able to lose yourself on skag and skip,

Skip out for beer during commercials,

Because the revolution will not be televised.


(...)


You will not have to worry about a dove in your

bedroom, a tiger in your tank, or the giant in your toilet bowl.

The revolution will not go better with Coke.

The revolution will not fight the germs that may cause bad breath.

The revolution will put you in the driver's seat.



The revolution will not be televised, will not be televised,

will not be televised, will not be televised.

The revolution will be no re-run brothers;

The revolution will be live."


Gil Scott-Heron

9.12.06

RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM

"Com o focinho entre dois olhos muito grandes
por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra"

António José Forte (in EDOI LELIA DOURA)

7.12.06

Hopelessness

"- E se não houver mais ninguém, se não houver mais nenhuma porta onde bater?! Porque é necessário ter uma porta onde bater. Porque há momentos na vida em que é indispensável ir a qualquer lado, seja a onde for! (...) Prezado senhor, prezadíssimo senhor meu, é que é preciso um homem ter pelo menos um sítio onde tenham pena dele!"

Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski)

1.12.06

Joana

Com penas nas mãos
percorres a austeridade do tempo,
levantas o véu marítimo que cobre a terra dos sonhos,
levantas a vida.

Na tua leveza de menina guardas o mundo.

Com cada lágrima cristalizada
dispersas na terra um rasto da tua solidão,
e até que ela se esgote não deixes nunca
que te matem o fulgor da juventude.

O teu sorriso é o sol a bater nas searas de trigo.

Entende que em cada momento existe um ombro,
uma qualquer outra vida menor,
uma qualquer boca que te suspire nos pulsos
um pouco mais de vida
na esperança da luz do teu olhar.